quinta-feira, 9 de março de 2017

H. P. Lovercraft: Autobiografia e Notas Sobre a Escritura de Contos Fantásticos

Li uma das Coletâneas de Contos de H. P. Lovercraft e achei sensacional algumas notas que ele deixou no final do livro e resolvi transmiti-las a vocês que curtem o RcL©

Abaixo vou deixar também uma Carta que enviou a Resposta. Michael que é praticamente uma autobiografia, achei legal compreender um pouco a cabeça de Lovercraft, influenciador​ do grande mestre King!

Notas sobre a escritura de contos fantásticos

O que me leva a escrever contos é a satisfação de visualizar com maior clareza, detalhe e estabilidade as impressões vagas, efêmeras e fragmentárias de assombro, beleza e expectativa aventureira que me são comunicadas por visões (cênicas, arquitetônicas, atmosféricas etc.), ideias, acontecimentos e imagens presentes na arte e na literatura. Escolhi os contos fantásticos porque melhor se adaptam à minha inclinação — um dos meus desejos mais ardentes e perenes é criar, por alguns instantes, a ilusão de uma estranha suspensão ou violação dos irritantes limites impostos pelo tempo, pelo espaço e pelas leis naturais que eternamente nos aprisionam e frustram nossa curiosidade relativa aos espaços cósmicos infinitos além do alcance de nossa visão e de nossa análise. Esses contos muitas vezes enfatizam o elemento de horror porque o medo é nossa emoção mais profunda e mais intensa, e também a que mais se presta à criação de ilusões que desafiem a Natureza.

O horror e o desconhecido, ou o estranho, mantêm sempre uma relação muito estreita, de modo que é difícil pintar um retrato convincente do esfacelamento das leis naturais ou da estranheza ou singularidade cósmica sem destacar a emoção do medo.

O tempo assume um papel importante em muitas das minhas histórias porque é o elemento que assoma na minha imaginação como sendo aquele que evoca os dramas mais profundos e os terrores mais sinistros do universo. A batalha contra o tempo parece-me ser o tema mais poderoso e mais fértil de toda a expressão humana.

Embora a forma que escolhi para as minhas histórias seja sem dúvida especial e talvez limitada, não deixa de ser um modo persistente e permanente de expressão, tão antigo quanto a própria literatura. Sempre haverá um número diminuto de pessoas que sentem uma curiosidade ardente a respeito do espaço sideral desconhecido e um desejo ardente de escapar da prisão do conhecido e do real rumo às terras encantadas de incríveis aventuras e possibilidades infinitas aonde os sonhos nos transportam, e que os bosques densos, as fantásticas torres urbanas e os pôres do sol chamejantes sugerem-nos por breves instantes. Essas pessoas incluem grandes autores e também amadores insignificantes como eu — sendo Dunsany, Poe, Arthur Machen, M.R. James, Algernon Blackwood e Walter de la Mare os mestres do gênero.

Em relação ao modo como escrevo um conto — não existe um método único. Cada um dos meus contos tem uma história diferente. Por uma ou duas vezes fiz o relato literal de um sonho; mas, em geral, começo com uma ambientação ou uma ideia ou uma imagem que desejo expressar e então trabalho-a na minha imaginação até que me ocorra uma forma plausível de materializá-la em uma cadeia de acontecimentos dramáticos passível de ser registrada em termos concretos. Costumo fazer uma lista mental das condições básicas ou das situações que mais se prestam à ambientação ou à ideia ou à imagem e então começo a especular sobre as explicações lógicas e racionais para a ambientação ou ideia ou imagem, tendo em vista a condição básica ou a situação escolhida.

O processo de escritura, claro, é tão variado quanto a escolha do tema e da ideia inicial; mas se as histórias de todos os meus contos fossem analisadas, é possível que as seguintes regras pudessem ser abstraídas a partir do procedimento padrão:

Prepare uma sinopse ou um cenário para os acontecimentos na ordem em que ocorreram — não na ordem da narrativa. Descreva com riqueza suficiente para contemplar todos os pontos vitais e motivar todos os incidentes planejados. Detalhes, comentários e estimativas das consequências às vezes são desejáveis nessa estrutura temporária.

Prepare uma segunda sinopse ou cenário para os acontecimentos — agora na ordem da narrativa (não na ordem de ocorrência), com grande riqueza de detalhes e notas relativas a mudanças de perspectiva, ênfases e clímax. Faça as alterações necessárias na sinopse original caso essa mudança aumente o impacto dramático ou a eficácia geral do conto. Interpole ou exclua incidentes à vontade — não se prenda jamais à ideia original, mesmo que o resultado seja um conto absolutamente diferente do planejado. Faça acréscimos e alterações na medida em que ocorrerem durante o processo de formulação.

Escreva todo o conto — depressa, com fluência e sem tecer muitas críticas — de acordo com a segunda sinopse, na ordem da narrativa. Altere os incidentes e o enredo sempre que o andamento do processo sugerir alterações, sem jamais se ater a qualquer esquema prévio. Se em algum ponto o desenvolvimento revelar novas oportunidades de efeito dramático ou de narração vívida, faça os acréscimos necessários — depois volte atrás e reconcilie as partes preexistentes com o novo plano. Acrescente e exclua seções inteiras de acordo com o necessário ou com o desejado, tentando diferentes inícios e fins até encontrar o melhor arranjo. Certifique-se de que todas as referências ao longo da história estejam completamente adaptadas ao esquema final. Remova todas as excrescências possíveis — palavras, frases, parágrafos ou mesmo episódios e elementos inteiros —, tomando as precauções habituais em relação a conciliar todas as referências.

Revise todo o texto, com especial atenção ao vocabulário, à sintaxe, ao ritmo da prosa, à proporcionalidade das partes, às sutilezas do tom, à graça e ao poder persuasivo das transições (de uma cena a outra, da ação lenta e detalhada à ação rápida e superficial e vice-versa… etc., etc., etc.), à eficácia do início, do fim, dos clímaxes etc., ao suspense e ao interesse dramático, à plausibilidade, à atmosfera e a vários outros elementos.
Prepare uma cópia datilografada — acrescentando revisões finais conforme o necessário.

O primeiro estágio muitas vezes é puramente mental — trabalho com um conjunto de variáveis e acontecimentos na minha imaginação e não escrevo nenhuma palavra até que me sinta capaz de preparar uma sinopse detalhada dos acontecimentos na ordem da narrativa. Mas é verdade que às vezes começo a escrever antes mesmo de saber como desenvolver a ideia — assim, este começo constitui um problema a ser motivado e explorado.

Creio que existem quatro tipos distintos de conto fantástico; um que expressa uma ambientação ou uma impressão, outro que expressa uma composição pictórica, um terceiro que expressa uma situação, condição, lenda ou composição intelectual, e um quarto que explica um quadro determinado ou uma situação dramática ou clímax específico. De outro modo, os contos fantásticos podem ser agrupados em duas categorias amplas — aqueles em que o portento ou o horror refere-se a alguma condição ou fenômeno e aqueles em que se refere a uma ação humana relacionada a uma condição ou fenômeno bizarro.

Os contos fantásticos — em particular os de horror — parecem depender de cinco elementos bem definidos: (a) um horror ou uma anormalidade subjacente — uma condição, entidade etc., (b) os efeitos gerais e consequências do horror, (c) a forma da manifestação — o objeto que corporifica o horror e os fenômenos observados, (d) as reações de medo que pertencem ao domínio do horror e (e) os efeitos específicos do horror em relação ao conjunto de condições dadas.

Ao escrever um conto fantástico, sempre empenho o maior cuidado para obter a ambientação e a atmosfera desejadas e enfatizar os pontos críticos da história. É impossível, salvo no charlatanismo ficcional mais imaturo, apresentar o relato de fenômenos impossíveis, improváveis ou inconcebíveis como uma narrativa ordinária de ações objetivas e emoções convencionais. Acontecimentos e condições inconcebíveis apresentam-se como um obstáculo a ser transposto, o que só pode ser feito por meio da manutenção de um realismo minucioso em todas as partes da história, exceto naquela em que se aborda o prodígio em questão. O portento deve receber um tratamento deliberado e impressionante — com uma atenta preparação emocional — sob pena de soar banal e pouco convincente. Sendo o principal elemento da história, sua mera existência deve obscurecer todos os demais personagens e acontecimentos. Mas os personagens e acontecimentos devem ser consistentes e naturais, exceto quando deparam-se com o singular portento. Em relação a este prodígio central, os personagens devem manifestar as mesmas emoções incontroláveis que personagens semelhantes manifestariam diante de tal prodígio na vida real. Um prodígio não pode jamais ser tratado com indiferença.

Mesmo quando os personagens têm alguma familiaridade com o prodígio, tento comunicar um espanto e uma grandeza análogos aos que o leitor deve sentir. Um estilo casual arruína qualquer fantasia com pretensões sérias.

A atmosfera, e não a ação, é o grande desideratum da ficção fantástica. Em verdade, tudo o que um conto maravilhoso almeja é pintar o retrato convincente de um determinado sentimento humano. No momento em que tenta fazer qualquer outra coisa, o conto torna-se barato, pueril e irrelevante. Deve-se dar ênfase à insinuação sutil — pistas e pinceladas discretas relativas a detalhes associativos que expressem diferentes tonalidades de sentimento e componham a vaga ilusão da estranha realidade do elemento irreal. Evite listas inócuas de acontecimentos fantásticos sem nenhuma substância ou relevância senão como nuvens de cor e simbolismo.

Eis as regras e padrões que sigo — de forma consciente ou inconsciente — desde que me propus a escrever contos fantásticos. O sucesso de minhas obras pode muito bem ser disputado — mas estou certo de que, houvesse eu ignorado as considerações feitas nos parágrafos precedentes, seriam muito inferiores ao que são.

Carta a R. Michael

Quanto a mim e às condições em que escrevo — temo serem assuntos um tanto insignificantes, uma vez que, a despeito de meus gostos excêntricos, em verdade sou um indivíduo deveras medíocre e desinteressante que mal produziu qualquer coisa que se possa chamar de literatura. Contudo — eis aqui alguns dados.

Sou uma criatura prosaica de meia-idade prestes a fazer 39 anos no dia 20 do mês próximo — natural de Providence, de uma antiga família de Rhode Island por parte de mãe e um pouco mais inglês por parte de pai. Nasci na parte leste do antigo distrito colonial, de modo que eu podia olhar para o Oeste em direção a ruas pavimentadas e para o Leste em direção a prados verdejantes e bosques e vales.

Por força de minha herança campestre, eu olhava a Leste com maior frequência do que a Oeste; de modo que até hoje sou três-quartos rústico.

Neste instante, encontro-me sentado às margens verdejantes do rio cintilante que meus primeiros olhares conheceram e amaram. Esta parte do mundo de minha infância permanece imutável porque faz parte do sistema de parques local — louvados sejam os deuses por manterem imaculadas as cenas que a minha tenra fantasia povoou com faunos e sátiros e dríades!

Meu gosto por coisas estranhas começou muito cedo, pois sempre tive uma imaginação absolutamente descontrolada. Eu sentia medo do escuro até o meu avô curar-me ao fazer com que eu caminhasse por cômodos e corredores vazios à noite, e tinha uma tendência natural a urdir fantasias em torno de tudo o que via. Muito cedo, também, surgiu o gosto por coisas antigas que é uma parte tão característica de minha personalidade atual.

Providence é uma cidade antiga e pitoresca, inicialmente construída em uma encosta íngreme pela qual ainda enveredam as vielas da época colonial com vãos de entrada entalhados, providos de claraboias, lances duplos de escada com corrimãos de ferro e afilados coruchéus georgianos. Este ancestral precipício vertiginoso situa-se entre a área residencial e o distrito financeiro, e os relances que dele tive na meninice instilaram-me uma profunda reverência pelo passado — a época das perucas e tricornes e livros encadernados em couro com ss longos.

Meu gosto por estes últimos viu-se fomentado pela existência dos inúmeros exemplares na biblioteca de minha família — a maioria deles em um quartinho sem janelas, no sótão, onde eu tinha um pouco de medo de entrar sozinho, embora o terror potencial na verdade aumentasse os encantos dos vetustos tomos que lá encontrei e li.

Coisas estranhas sempre me cativaram mais do que quaisquer outras — desde o princípio. De todas as histórias que nos contam durante a infância, as fábulas e lendas de bruxas e fantasmas deixaram as impressões mais profundas. Comecei a ler ainda pequeno — aos quatro anos — e as fábulas dos irmãos Grimm foram minha primeira leitura contínua. Aos cinco anos li As mil e uma noites e fiquei absolutamente deslumbrado. Minha mãe preparou um canto árabe em meu quarto — com tapeçarias, lamparinas e objetos de arte comprados no “Damascus Bazaar” da vizinhança — e assumi a identidade fictícia de Abdul Alhazred; um nome que desde então celebro em minha fantasia, e que em tempos recentes usei para designar o autor do lendário Al Azif ou Necronomicon.

Por volta dos seis anos interessei-me pela mitologia greco-romana, à qual aos poucos fui levado pelo Wonder Book e pelos Tanglewood Tales de Nathaniel Hawthorne, bem como por um exemplar perdido da Odisseia na Half-Hour Series da Harper. Desmontei incontinente o meu cantinho de Bagdá e tornei-me um romano — voltando-me à Idade da fábula de Bulfinch e aos assombrosos museus de belas-artes aqui e em Boston. Foi por esta época que comecei minhas grosseiras tentativas no gênero literário.

Aprendi a escrever no papel — em letra de forma — assim que aprendi a ler; mas não tentei nenhuma composição original até a época de meu sexto aniversário, quando, a muito custo, dominei a arte de escrever em letras cursivas.

Curiosamente, a primeira coisa que escrevi foi em verso; uma vez que sempre tive um bom ouvido para o ritmo e ainda pequeno houvesse estudado um livro antigo sobre “Composição, rhetorica e syllabas poeticas” impresso em 1797 e usado pelo meu trisavô na East Greenwich Academy em idos de 1805.
Os primeiros versos infantis dos quais me recordo são “The Adventures of Ulysses”; ou, “The New Odyssey”, escritos quando eu tinha sete anos. Este começava:

Na noite escura, vê a bravura do campeão da guerra
Que voga ao lar, co’a glória a ecoar, e a esposa aguarda em terra.

No embate vil, o muro ruiu, e Tróia está acabada.

Mas no caminho o deus marinho engendra-lhe ciladas.

Na época a mitologia era o meu alimento, e eu chegava quase a acreditar nos deuses gregos e romanos — imaginava vislumbrar faunos e sátiros e dríades ao crepúsculo nos bosques de carvalho onde agora mesmo estou sentado.

Quando eu tinha cerca de 7 anos, por obra de meus devaneios mitológicos eu queria ser — não apenas ver — um fauno ou um sátiro. Em geral imaginava que a parte superior das minhas orelhas começava a afilar-se e que sinais de chifres incipientes começavam a surgir em minha fronte — e deplorava o fato de que meus pés levassem tanto tempo para transformar-se em cascos! De todos os jovens pagãos, eu era o mais obstinado. A catequese — que comecei a frequentar aos cinco anos — não me impressionou em nada (embora eu amasse a antiga graça georgiana da igreja hereditária de que minha mãe era adepta, a imponente First Baptist, construída em 1775); e eu chocava a todos com minhas inclinações pagãs — a princípio declarei-me muçulmano e, mais tarde, romano pagão. Cheguei de fato a construir altares em honra de Pã, Jove, Minerva e Apolo, e sacrifiquei pequenos objetos em meio ao odor de incenso. Quando, um pouco mais tarde, a ciência obrigou-me a descartar este paganismo infantil, tornei-me um ateu materialista radical.

Desde então dedico-me um bocado à filosofia e não vejo nenhuma razão que justifique crenças em qualquer forma de mundo espiritual ou sobrenatural.

Tudo indica que o cosmo seja uma eterna massa de forças em constante mudança e interação; que o atual universo visível, nossa minúscula Terra e nossa raça de seres orgânicos inferiores formem apenas um incidente transitório e desprezível. Assim, minha concepção séria da realidade é dinamicamente oposta à posição fantástica que assumo como esteta. Em estética, nada me atrai mais do que a ideia de estranhas suspensões das leis naturais — vislumbres bizarros de mundos de horror ancestral e dimensões anômalas, e insinuações de longínquos abismos desconhecidos nos limites do cosmo desconhecido. Creio que esse tipo de coisa fascina-me ainda mais porque não lhe dou o menor crédito!

Bem — comecei a escrever contos fantásticos aos 7 ou 8 anos, quando tive o primeiro contato com meu ídolo Poe. Mas o material era demasiado ruim, e foi em boa parte destruído; porém ainda tenho dois exemplares ridículos que escrevi aos 8 anos — “The Secret of the Grave” e “The Mysterious Ship”. Não escrevi nenhum conto aceitável antes dos 14 anos. Entre os 8 e 9 anos, meus interesses sofreram uma grande reviravolta, e tomei-me de entusiasmo pelas ciências — em particular, pela química. Eu tinha um laboratório no porão e gastava toda a minha mesada em instrumentos e livros científicos.

Nesta fantasia eu contava com o incentivo de minha mãe e de meu avô (meu pai já falecera), uma vez que eu era muito doente — quase um inválido por conta de meus nervos.

Aos 7 anos comecei a estudar violino, mas aborreci-me com o instrumento 2 anos mais tarde e desde então tenho um gosto musical duvidoso. Muitas vezes eu não podia frequentar a escola, mas recebi educação em casa, da minha mãe, das minhas tias e do meu avô, e mais tarde tive um tutor. Vez por outra tive breves relances da escola, e consegui frequentar o ginásio por quatro anos — mesmo que o esforço tenha provocado uma crise nervosa tão aguda que não pude entrar para a universidade. De fato, minha saúde só melhorou oito ou nove anos atrás — embora agora, por mais estranho que seja, eu pareça estar me transformando em um velho pássaro robusto e magro!

O período da juventude que dediquei à ciência mostrou-se longo; embora ao mesmo tempo eu me dedicasse à literatura e também brincasse como outra criança qualquer. Eu não tinha nenhum interesse por jogos ou esportes, que hoje tampouco me interessam — mas gostava de brincadeiras que incluíssem algum elemento de interpretação dramática; guerra, polícia, fora-da-lei, estradas de ferro etc. Aos poucos, da química passei à geografia e por fim à astronomia, que me fascinaria e influenciaria o meu modo de pensar mais do que qualquer outra coisa em qualquer outra época. Obtive um pequeno telescópio — que ainda guardo — e comecei a escrever com grande entusiasmo sobre as esferas celestes.

Ainda tenho alguns de meus velhos manuscritos e uma cópia mimeografada do meu periódico juvenil “The Rhode Island Journal of Astronomy”. Ao mesmo tempo minhas inclinações ao antiquariato faziam-se notar cada vez mais.

Vivendo em uma cidade antiga em meio a livros antigos, tomei Addison, Hope e o dr. Johnson por modelos na prosa e no verso; eu literalmente vivia naquele mundo emperucado, ignorando o mundo presente. Quando eu tinha 14 anos meu avô faleceu; e no caos financeiro que sobreveio, a casa onde nasci precisou ser vendida. A dupla perda tisnou-me com uma melancolia que custou a passar; pois tenho afinidades geográficas demasiado fortes, e venerava cada centímetro da casa, do pátio, que mais parecia um parque, das estranhas fundações e do estábulo à sombra onde eu passara a minha juventude. Por muito tempo sonhei em recomprar a casa “quando eu enriquecesse” — mas, passados alguns anos, percebi que eu não tinha o menor instinto aquisitivo nem as habilidades necessárias ao sucesso financeiro.

Eu e o comercialismo não temos quase nada em comum, e desde aquele triste ano de 1904 levo uma vida de limitações e penúria cada vez maiores.

Antes da morte da minha mãe, tínhamos um apartamento próximo à antiga casa. Logo vieram malfadadas excursões a outros lugares, incluindo dois anos em Nova York, cidade que aprendi a detestar como se fosse veneno. Agora tenho um quarto em um silencioso recanto vitoriano no pico do velho morro de Providence — em uma tranquila vizinhança antiga que tem a aparência exata da área residencial de um vilarejo adormecido.

Minha tia mais velha — com a saúde frágil e incapaz de cuidar da casa — ocupa um quarto na mesma residência; e uma vez que tanto ela como eu guardamos o máximo possível dos antigos móveis, fotografias e livros (os quartos são muito amplos), ainda temos muito da antiga atmosfera familiar por aqui.

Sabendo que jamais serei rico, dar-me-ei por satisfeito se puder ficar aqui até o fim dos meus dias — em um lugar tranquilo como as minhas mais tenras lembranças, de onde posso ir a pé aos bosques, aos campos e à beira dos rios onde passei a minha infância. Minha principal ocupação remunerada é a revisão profissional de prosa e verso para outros escritores — uma tarefa odiosa, porém mais garantida do que os riscos da escrita original para os que não produzem obras populares e comerciais.

Escrevo meus próprios contos quando tenho oportunidade, o que não ocorre com a frequência que eu gostaria.

Sempre que possível, carrego meus aprestos em uma pasta de couro preto a fim de escrever ao ar livre — ora nas margens verdejantes do rio que tanto amo, ora no cenário mais selvagem ao norte de Providence. Meu único passatempo puramente recreativo são viagens históricas — visitar outras cidades antigas e estudar espécimes de arquitetura colonial. O parco conteúdo de minha carteira torna as viagens um tanto limitadas, mas de qualquer modo consegui percorrer um pequeno trajeto histórico de Vermont à Virgínia nos últimos anos.

As primeiras coisas que publiquei foram uma série mensal de artigos sobre astronomia em um jornal de Providence. Eu tinha 16 anos na época e sem dúvida senti-me importante. Neste mesmo período, comecei a duvidar de meu talento ficcional e dediquei-me à versificação. Aos 18 anos resolvi que eu não sabia escrever narrativas e queimei todos os meus contos salvo alguns grotescos experimentos infantis e duas peças mais recentes — “The Beast in the Cave” e “The Alchemist”. Não me arrependo em nada, pois o material era imaturo ao ponto de causar irritação.

Mas o que mais faz com que eu me sinta ridículo é o modo solene com que eu encarava meus versos — pois a bem dizer eu nunca fui nem jamais serei poeta!

Minhas ilusões persistiram porque na época eu era um semi-inválido e praticamente um recluso, de modo que não recebi muitas críticas salutares.

Então — aos 24 anos — juntei-me a uma associação literária amadora cujas atividades eram conduzidas por correspondência; e assim obtive grandes incentivos e muitas sugestões críticas. Quisera eu que hoje a organização ainda fosse tão ativa quanto naquela época — mas infelizmente ela encontra-se às portas da morte, sem nenhuma chance de melhora. Neste ponto as minhas ambições, que desviaram-se da ciência para a literatura quando ficou claro que a saúde frágil não me facultaria empenhar os esforços necessários às pesquisas astronômicas ou químicas, tornaram-se mais claras; e pouco a pouco vi que a prosa, e não o verso, era o meu ambiente natural. Ao mesmo tempo, as mais patentes excentricidades do século XVIII começaram a afastar-se do meu estilo.

Em 1916, permiti que um dos editores amadores no meu círculo literário publicasse um dos dois contos que eu salvara do desastre em 1908; e logo a seguir um amigo disse-me que a ficção fantástica era o meu único forte — o único ponto em que eu teria chances de chegar efetivamente ao nível da legítima criação artística.

A princípio fiquei um tanto incrédulo, pois eu desconfiava do valor de meus contos; mas fui persuadido a fazer mais uma tentativa após meu silêncio ficcional de 9 anos. Os resultados foram “A tumba” e “Dagon”, escritos respectivamente em junho e julho de 1917. Eu receava que a falta de prática recente no gênero narrativo resultasse em fracasso, mas logo me asseguraram que ambos eram muito superiores aos dois contos remanescentes de minha juventude.

Então comecei a trabalhar a sério, produzindo um número considerável de novas histórias das quais aproveitei cerca de 7/8. Eu não tinha nenhuma ideia a respeito do mercado profissional até a fundação da Weird Tales — e ainda duvido de que outra publicação fosse aceitar contribuições regulares de minha autoria.

Elas não parecem más ao lado do lixo indescritível que constitui grande parte do conteúdo da W. T., mas temo que eu não fosse me sair tão bem como escritor literário — ao lado da grande literatura de Poe, Machen, Blackwood, James, Bierce, Dunsany, De la Mare e assim por diante.

A maior honra que recebi até agora foi uma menção com três estrelas e uma nota biográfica no volume “Best Short Stories of 1928” editado por O’Brien — por conta de meu “A cor que caiu do espaço”.
Bem — acho que é tudo a meu respeito! Pouca coisa, mas você pode ver como um velho envaidecido pode tornar-se prolixo quando alguém o incita a falar sobre si!

Sou um sujeito assim — um cético materialista com gostos clássicos e tradicionais; afeito ao passado e a suas relíquias e tradições, convicto de que a única busca de sentido digna de um homem neste universo caótico é a busca dos prazeres requintados e inteligentes que se obtêm mediante uma vívida existência mental e imaginativa. Uma vez que não creio em valores absolutos, aceito os valores estéticos do passado como os únicos pontos de referência disponíveis — os únicos valores relativos trabalháveis — em um universo de outro modo conturbado e insatisfatório.

Assim, sou ultraconservador em termos sociais, artísticos e políticos e, ao mesmo tempo, apesar dos meus 39 anos, um modernista radical em todos os assuntos científicos e filosóficos. Como amante da liberdade ilusória do mito e do sonho, entrego-me à literatura escapista; da mesma forma, como amante do passado, pinto minhas ideias com a paleta do antiquário.

Meu período moderno favorito é o século XVIII; meu período antigo favorito, o intocado mundo viril da Roma republicana. Não consigo interessar-me pela Idade Média — até a mágica e os mitos daquela época desolada parecem-me demasiado ingênuos para soarem convincentes.

Voltando ao meu amor por abandonar o mundo real em direção a um mundo imaginário, prefiro o dia à noite quando não estou no campo aberto. Da mesma forma, minhas horas são terríveis e maravilhosas em casa — em geral, de pé ao pôr do sol e na cama pela manhã.
É raro eu estar na rua tarde — mas raro estar de pé cedo! No inverno eu literalmente hiberno, pois tenho uma sensibilidade extrema ao frio. A menor friagem me derruba! Por outro lado, não sei o que é passar calor. O aperto só começa quando faz 35 à sombra!

No geral, sou quase um eremita, como fui em minha juventude. A maioria dos meus contatos literários — um “time” bastante agradável com nomes que você reconhecerá dos sumários da W. T. (Frank Belknap Long Jr., Donald Wandrei, Clark Ashton Smith, H. Warner Munn, Wilfred B. Talman, August W. Derleth etc., etc.) — moram em outras localidades, e estou ficando velho demais para apreciar conversas que fujam aos meus assuntos favoritos.

A velhice levou-me cedo. Meu temperamento é o mesmo de 20 anos atrás, e também será o mesmo daqui a 20 anos, caso eu viva até lá. Quanto à escrita — em geral sei o que pretendo dizer antes de iniciar um conto, porém muitas vezes altero o enredo no meio do caminho se a pena sugere-me novas ideias. Escrevo sempre em letra cursiva — não consigo sequer pensar com uma maldita máquina à minha frente — e faço correções minuciosas.

A grande rapidez com que escrevo material não destinado a publicação dá lugar a uma cautela muito vagarosa quando enceto um novo texto sério em prosa. Dedico muita atenção aos detalhes, inclusive ao ritmo e às sutilezas do tom; embora meu grande objetivo seja alcançar a máxima simplicidade — a arte que esconde a arte. Em geral, dedico três dias a um conto de extensão média — em sessões de duração variável. Não gosto de interromper meus pensamentos, então não admito que nenhuma outra tarefa me distraia.

Escrevo apenas quando o clamor íntimo pela expressão torna-se irresistível. Nada me inspira maior desprezo do que a escrita forçada ou mecânica ou comercial. A não ser que se tenha algo a dizer, deve-se permanecer calado! Tenho uma agenda onde anoto ideias estranhas e enredos rudimentares para uso posterior, e também um arquivo de notícias estranhas de jornal que uso como possível fonte de inspiração. Uns poucos contos foram baseados em sonhos — os meus são muito estranhos e fantásticos. Na juventude eu tinha mais pesadelos do que tenho agora — aos seis anos encontrava com bastante frequência terríveis demônios dos sonhos que chamei de “noctétricos”.

Usei-os em uma das minhas histórias. Tenho as melhores ideias entre as duas da madrugada e o amanhecer.
O que mais temo é datilografar os meus manuscritos, pois abomino a visão e o som das máquinas. Não tenho como delegar o serviço a outros, pois ninguém é capaz de ler meus originais cheios de rabiscos, entrelinhas e inúmeras correções. Às vezes nem eu mesmo consigo decifrá-los!

Mas creio que agora não resta muito a dizer sobre o suposto autor ou suas efusões!

Por fim, devo pedir desculpas por este arroubo de prolixidade senil! É assim que a velhice manifesta-se ante uma oportunidade de recordar épocas passadas — em especial quando o cenário relembra o passado de maneira tão intensa como as margens deste rio.
Mas o ocidente fulgura com o sol que parte, e acima das copas ancestrais a alongada foice prateada da jovem lua perturba. Preciso ir para casa…

20 de julho de 1929

Resenhando Com Luke ®

Fonte: Livro: O Chamado de Chlutlu e Outros Contos

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