A Irmandade
Procurando contos legais em alguns sites acabei encontrando alguns de brasileiros.
O legal é que eles se desafiam a escrever sobre alguma coisa, algum assunto selecionado por um deles e então escrevem em 3 dias um conto relacionado a aquele assunto.
O site tem resenhas, artigos relacionados a livros, algumas dicas de leituras e outras coisas, mas sem duvida nenhuma o que me chamou atenção foram os contos, os de terror principalmente.
Me diverti lendo alguns e resolvi postar aqui no Blog.
Segue alguns que eles fizeram quando foi colocado em questão o assunto: Lendas Urbanas e um Bônus de Natal que eu gostei.
O Velho do Saco - Luciano Alencar
Era um velho maltrapido de dentes poucos e tortos, revirava as lixeiras atrás de comida e cheirava como os porcos. Carregava um saco velho, que outrora carregara feijão, que estava sempre cheio embora aquele homem não tivesse um tostão. Era temido pelas crianças da rua, pois diziam que ele apanhava e levava aquelas que estavam sozinhas. Os moradores reviravam os olhos com desconfiança àquele saco sempre cheio, onde acreditavam guardar sua poupança e os frutos de seus furtos.
Foi quando Pedro, menino novo, teimoso e sem medo, saiu de casa sem o saber de sua mãe, correu para o parque sozinho para brincar no balanço e sumiu. A procura pelo garoto foi árdua e sem descanso, por toda a rua e com a rua toda. Logo Maria chorou para sua mãe e para todos que pudessem ouvir: “Foi o velho do saco que pegou Pedro e do saco ele não consegue fugir!”.
Todos logo pensaram que Maria vira Pedro ser colocado no saco e correram atrás do velho gritando “velho safado”. Não tardou a acharem-no dormindo no ponto de ônibus debaixo do banco com seu saco de travesseiro. Uns puxaram-no com força, outros correram ao saco, dois, mais exaltados, arrancaram-no um dos poucos dentes. Um silêncio curto que durou um repente foi cortado pela surpresa de um saco inteiramente vazio. Com sangue no rosto, o velho senil, ao reaver seu saco apenas sorriu. A multidão enganada, por uma mente infantil, voltou à procura de Pedro.Mas como poderia, um saco que sempre estava cheio, ao ser aberto, estar completamente vazio? E onde estaria Pedro, como ele sumiu? Atrás do sorriso sem dentes e do rosto machucado, o velho guardava muita coisa em seu precioso saco. Longe dos moradores e já longe de suspeita, o velho correu a um antigo casebre e entrou por uma passagem estreita. Ergueu seu saco ainda vazio e colocou a mão lá no meio e de lá tirou Pedro como se o saco sempre estivesse cheio.
A criança tinha uma carne doce e o velho custou a comê-la com os poucos dentes que tinha era difícil mordê-la. Ainda hoje o velho do saco anda por aí como mendigo disfarçado. Arrebata crianças que se atrevem solitárias pela cidade de toda idade. Coloca-as em seu saco para devorar-lhes a carne, seu saco sempre cheio de crianças sempre cheio seu saco.
Fim
Ela vivia no limbo, naquela dimensão atemporal em que os vivos raramente a viam andando pelas estradas desertas à noite. Recusava-se a ir embora daqueles limites ermos, pois os longos caminhos pavimentados entre as cidades a atraiam de uma forma incomum, ou talvez, é muito provável, habituara-se àquela vida errante de atrair homens e matá-los com requintes de sadismo, porque assim era o que se pensava dela.
Ela tinha o poder de influir na mente dos pobres caminhoneiros, ou viajantes ocasionais, apresentado-se numa figura de mulher magnífica, trajando um espetacular vestido branco, vestido este que lhe assegurava curvas voluptuosas num decote generoso, de seios fartos, de sapatos levados à mão, parecendo vir de algum baile nas redondezas a caminho de casa, andando sempre com passos vagarosos, desprotegida, e recatadamente sensual.
O cemitério, onde fora enterrada, não ficava muito longe de suas caminhadas noturnas. Ela sempre voltava para descansar no túmulo assim que os primeiros raios de sol despontavam por sobre o asfalto.
Ela fora espancada, estuprada, esfaqueada e abandonada à beira da estrada pra morrer sob agonia e desespero, escondida por seu algoz no capim alto, longe dos faróis dos carros que atravessaram aquela terrível e interminável noite. Morrera assim que, ao chegar se arrastando ao acostamento, constatara que nenhuma criatura caridosa iria parar o seu veículo com o propósito de lhe ajudar. Ela não entendia o temor dos motoristas de que aquele corpo ensaguentado pudesse ser um engodo de marginais para um assalto, e o mais que pôde fazer, então, foi jurar vingança a todos que se desviavam de seu desespero e continuavam as suas vidas, muitos deles conhecidos na pequena cidade próxima.
Eles, prometera a si mesma, pagariam caro por aquela negligência de ação misericordiosa, pois não lhe ofereceram a menor chance de uma ajuda hospitalar ou conforto de palavras nas suas últimas horas de vida. Morrera solitária e se agarrara ao limbo dimensional daqueles ermos para acertar as contas. Mas o problema não era com os motoristas covardes da noite, e ela sabia bem disso. Os fins, pensava, justificam os meios. Suas atitudes eram apenas para pressionar a sua mãe. A filha morta tomava parte nos sonhos da mãe e a dava-lhe provas do porquê estar sendo tão cruel. E quando ela ouviu o motor cansado e viu os faróis daquele velho Ford vindo vagarosamente na estrada, ela sabia, mesmo passados todos aqueles anos, que tinha finalmente vencido.
O carro parou no acostamento, a velha senhora saiu do veículo, passando na frente dos faróis penetrantes da neblina forte que tomava de assalto o lugar. Ao longe, quem passasse por ali naquela hora, podia ouvir as músicas do baile de onde a velha, toda arrumada no seu melhor traje de noite, viera.
— Você venceu minha filha. Sim, você venceu! Eu não aguento mais isso. – Choramingou a velha para si mesma porque, embora não pudesse ver a morta, sabia que ela estava ali bem perto.
A velha foi até a porta do carona, abriu-a com a cara fechada de raiva, e puxou, pela gola da camisa, o marido bêbado e sonolento. Ele tentou se desvencilhar, surpreendido até, mas a mulher estava decidida, e forçou-o a ficar de joelhos à beira da estrada.
— Mas que diabo, mulher, o que... você... está fazendo. Eu não tô com vontade de mijar, criatura de Deus! – Balbuciou o velho com a vós empastada e vacilante das cachaças que havia tomado no baile.
E antes que ele se levantasse, a velha firmou a mão esquerda nos seus cabelos brancos, no topo da cabeça, e puxou para a claridade uma enorme faca de cozinha. Num único e decidido gesto, ela cortou a garganta do marido que não chegou a gritar, caindo à frente. Depois de limpar bem o cabo da faca, jogou-a ao lado do seu homem que estrebuchava e se tremia todo, esvaindo-se em sangue e urinando incontinenti no asfalto.
A velha voltou para o volante do carro e, antes de partir, gritou para a escuridão, justificou-se aos berros para o negrume da noite, para além do mato que se revoltava a tomar para si o acostamento:
— Pronto, minha filha. Você está satisfeita agora? Deixe estes inocentes das estradas em paz e vá embora pra sempre. Acabou! Minha filha, acabou!
E assim ela obedeceu satisfeita. Naquela noite, a temida mulher de branco não se encaminhou para o túmulo ou abordou outro incauto na rodovia, naquela noite ela buscou o seu caminho para longe daqueles ermos com um sorriso pleno de vingança no rosto.
Aqui se faz, aqui se paga.
Fim
Ela tinha o poder de influir na mente dos pobres caminhoneiros, ou viajantes ocasionais, apresentado-se numa figura de mulher magnífica, trajando um espetacular vestido branco, vestido este que lhe assegurava curvas voluptuosas num decote generoso, de seios fartos, de sapatos levados à mão, parecendo vir de algum baile nas redondezas a caminho de casa, andando sempre com passos vagarosos, desprotegida, e recatadamente sensual.
O cemitério, onde fora enterrada, não ficava muito longe de suas caminhadas noturnas. Ela sempre voltava para descansar no túmulo assim que os primeiros raios de sol despontavam por sobre o asfalto.
Ela fora espancada, estuprada, esfaqueada e abandonada à beira da estrada pra morrer sob agonia e desespero, escondida por seu algoz no capim alto, longe dos faróis dos carros que atravessaram aquela terrível e interminável noite. Morrera assim que, ao chegar se arrastando ao acostamento, constatara que nenhuma criatura caridosa iria parar o seu veículo com o propósito de lhe ajudar. Ela não entendia o temor dos motoristas de que aquele corpo ensaguentado pudesse ser um engodo de marginais para um assalto, e o mais que pôde fazer, então, foi jurar vingança a todos que se desviavam de seu desespero e continuavam as suas vidas, muitos deles conhecidos na pequena cidade próxima.
Eles, prometera a si mesma, pagariam caro por aquela negligência de ação misericordiosa, pois não lhe ofereceram a menor chance de uma ajuda hospitalar ou conforto de palavras nas suas últimas horas de vida. Morrera solitária e se agarrara ao limbo dimensional daqueles ermos para acertar as contas. Mas o problema não era com os motoristas covardes da noite, e ela sabia bem disso. Os fins, pensava, justificam os meios. Suas atitudes eram apenas para pressionar a sua mãe. A filha morta tomava parte nos sonhos da mãe e a dava-lhe provas do porquê estar sendo tão cruel. E quando ela ouviu o motor cansado e viu os faróis daquele velho Ford vindo vagarosamente na estrada, ela sabia, mesmo passados todos aqueles anos, que tinha finalmente vencido.
O carro parou no acostamento, a velha senhora saiu do veículo, passando na frente dos faróis penetrantes da neblina forte que tomava de assalto o lugar. Ao longe, quem passasse por ali naquela hora, podia ouvir as músicas do baile de onde a velha, toda arrumada no seu melhor traje de noite, viera.
— Você venceu minha filha. Sim, você venceu! Eu não aguento mais isso. – Choramingou a velha para si mesma porque, embora não pudesse ver a morta, sabia que ela estava ali bem perto.
A velha foi até a porta do carona, abriu-a com a cara fechada de raiva, e puxou, pela gola da camisa, o marido bêbado e sonolento. Ele tentou se desvencilhar, surpreendido até, mas a mulher estava decidida, e forçou-o a ficar de joelhos à beira da estrada.
— Mas que diabo, mulher, o que... você... está fazendo. Eu não tô com vontade de mijar, criatura de Deus! – Balbuciou o velho com a vós empastada e vacilante das cachaças que havia tomado no baile.
E antes que ele se levantasse, a velha firmou a mão esquerda nos seus cabelos brancos, no topo da cabeça, e puxou para a claridade uma enorme faca de cozinha. Num único e decidido gesto, ela cortou a garganta do marido que não chegou a gritar, caindo à frente. Depois de limpar bem o cabo da faca, jogou-a ao lado do seu homem que estrebuchava e se tremia todo, esvaindo-se em sangue e urinando incontinenti no asfalto.
A velha voltou para o volante do carro e, antes de partir, gritou para a escuridão, justificou-se aos berros para o negrume da noite, para além do mato que se revoltava a tomar para si o acostamento:
— Pronto, minha filha. Você está satisfeita agora? Deixe estes inocentes das estradas em paz e vá embora pra sempre. Acabou! Minha filha, acabou!
E assim ela obedeceu satisfeita. Naquela noite, a temida mulher de branco não se encaminhou para o túmulo ou abordou outro incauto na rodovia, naquela noite ela buscou o seu caminho para longe daqueles ermos com um sorriso pleno de vingança no rosto.
Aqui se faz, aqui se paga.
Fim
Reflexos - Gabriela Marra
Você já viu alguém no espelho? Claro que já. Você mesmo, ou alguém em seu campo de visão. As pessoas têm segurança de se olhar todo o dia no espelho porque a razão diz que aquilo ali é só a nossa imagem e que existe enquanto estamos ali. A razão dá segurança.
Minha pergunta é: você já viu alguém dentro do espelho? Alguém que não existe e que não seja a sua imaginação?
Aquele alguém atrás de você, que te dá medo. Teu perseguidor. E quando você olha de novo, não está mais lá.
Espelho manchado, emoldurado, remendado. Qualquer superfície espelhada. Até mesmo aquele pequenino espelho que você guarda na gaveta, pode conter os segredos mais sombrios e monstruosos que nenhuma alma humana poderia suportar.
Para muitos admitir a existência de espíritos é sandice, bobagem, tolice, até mesmo superstição. É certo que eles estão a nossa volta esperando por alguma energia errada para mostrar sua malignidade. Na maioria das vezes a imagem destes seres demoníacos é refletida quando você menos espera, e na sua distração, você pode estar a caminho de um mau sonho.
Adquiri um espelho que era uma fantástica obra de arte clássica, me apaixonei por ele no primeiro piscar de olhos. Um grande espelho antigo em madeira entalhada começou a fazer parte da minha sala, tornando o ambiente harmônico e agradável. Seus cantinhos manchados pelo tempo davam a peça estilo e personalidade. Todos os dias, não perdia a oportunidade de terminar de me arrumar de frente para o grande espelho.
Fui advertido pelo vendedor que um espelho antigo como este já viu de tudo, guarda histórias e reflexos de várias pessoas, objetos e outras coisas. Outras coisas que ele não ousava dizer que existem, influenciam e decidem sem sequer serem notadas e muito menos tocadas pela razão.
Eu deveria tê-lo ouvido. Uma semana depois de eu ter me dado um presente tão belo tive uma surpresa, o que eu pensei ser um achado quase histórico enfeitando minha casa, aos poucos foi se tornando algo curiosamente sombrio.
Começou de manhã, minha imagem opaca deixou em evidência uma moça no fundo do espelho, com roupas do tempo antigo. Assustei-me, olhei para trás, só vi a parede branca. Voltei-me rapidamente para o espelho, só vi a parede branca, e meu reflexo como tinha de ser. Saí de casa apressado e amedrontado.
De volta à noite, resisti a olhar-me no espelho. Fui direto para a cozinha, jantei e tentei dormir, inutilmente. Levantei diversas vezes sem olhar em direção ao grande objeto enigmático, mas minha curiosidade venceu. Fui até a sala, observei tudo ao meu redor e vagarosamente pendi minha cabeça para o grande espelho de modo que eu não me refletisse nele, eu apenas o estudaria.
Aparentemente não tinha nada de estranho, mas eu estava com medo, me sentei no sofá com cuidado para que minha imagem não aparecesse se não em mim mesmo. Acabei dormindo ali.
De manhã cedo, esquecido completamente da pauta do dia anterior, levantei. Vi-me com marcas no rosto e braço por ter dormido no sofá, e tudo estava como normalmente deveria ser. Exceto pelo fato de que depois de me examinar através do espelho, saí de sua frente e estranhamente eu ainda estava lá. Não foi possível para eu entender isso, voltei em um susto para frente daquela coisa e lá estava eu me mexendo segundo meus movimentos, alívio, estranho alívio. Corri para não ter tempo de me ver de novo.
Consegui um grande lençol e o cobri. Saí no horário de sempre e voltei como de costume. O espelho ainda estava coberto. Fui dormir. Cobri-me todo, só com a cabeça de fora e os olhos arregalados. Vi um vulto passando no corredor em direção à sala. Medo. Pensei ser uma sombra qualquer, imaginação. Envolto até a cabeça em meu cobertor fui até lá.
Não posso descrever o susto mortal que tive, eu vi o vulto entrando no espelho. No ângulo que eu estava, conseguia ver novamente a moça lá dentro, ela me olhava atentamente. Com algum esforço dei uns passos até ser refletido, olhei ao meu redor, tudo quieto. Dei mais alguns passos. Pude ver o vulto ao lado da moça, ele puxava sua cabeça pelos longos cabelos loiros e com uma faca cortava seu pescoço. O sangue que fluía dela escorreu para o chão, molhou o tapete e sujou meus pés. Olhei para meus pés, para a imagem no espelho, os dois lá dentro me olhavam também.
A realidade morta a minha frente era indescritível. Então vi meu reflexo verdadeiro e o vulto atrás de mim com um sorriso sarcástico se aproximando. Não sei como tive forças de continuar ali, tamanho era meu pavor.
A coisa tocou meu ombro. Deixou-me com frio. Virei-me com instinto protetor, mas meu perseguidor não estava lá. Eu fui amaldiçoado com algo que pensei ser apenas uma lenda sem sentido. Minha alma foi aprisionada naquela imagem a minha frente, porque aquela imagem era minha alma se afastando de mim. Vi-me pelo lado errado, caindo enrolado no meu cobertor, meu outro eu bateu com a cabeça manchando de sangue o tapete. Não sei dizer se foi o corpo que morreu ou se foi eu. Muito tempo depois o corpo foi resgatado, me deixando sozinho e invisível. Contrariando as leis normais da vida, para sempre preso em mim mesmo.
Fim
Não Atenda O Telefone - Leon Nunes
Não posso reclamar de minha burriquice. Apaixonei-me por aquela índia perdidamente; paixão é um sentimento forte, mesmo depois da traição. Que ela era linda – indiscutível. Seus olhos – mistério. A boca – ardência. Tudo nela era formoso. Só havia uma coisa naquela índia que não percebi.
Eu estava assistindo meu programa preferido de ficção científica. Doctor Who. Primeira temporada. Doido por Rose. Entretido pelo ser poético do Doutor, um misto criança-adulto que marcou profundo. Episódio dez (aquele em que o Doutor dança, eu acho). Fui interrompido por um telefonema inesperado – telefone passou a tocar freneticamente. Eu estava decidido a informar ao outro na linha que não passava de engano. Predisposto a desejar-lhe, respeitosamente, boas noites antes de desligar. Escutei dela coisas que não entendi, e que me aturdiram.
Oh. Socorro. Por favor. Oh. Eu imploro.
Sua voz chorosa, visivelmente desesperada, encheu meu espírito de assombro. Não obstante o primeiro impacto, ainda carregado pelo espanto, pedi-lhe que me informasse o que ocorria e onde estava. Escutei gemidos e chiados ao fundo, mas ignorei quaisquer barulhos atento ao que ela dizia; disposto a me doar em auxílio.
Perimetral. Perimetral leste. Socorro. Perimetral.
Minha resposta diante de tal apelo foi que eu logo chegaria. A perimetral, autoestrada que circunda a cidade, ficava (e ainda fica) próximo de casa, bastou meia hora para nela eu trafegar. Sequer desliguei a televisão ao sair.
Não precisou muito tempo de viagem para encontrá-la. Sob a luz do farol de meu Renault ela estava. Seminua. Com seios à mostra. Uma cinta de couro caramelo entre eles – carregava uma espécie de cesto às suas costas, que tirou quando me viu parar e descer do carro mais adiante.
Quando desci ( Oh! Quando desci!) via a mais formosa das mulheres vindo à minha direção. Perguntei-me em silêncio como ela sabia meu número, como sabia que eu viria. Abriu os braços, na face o amor que nunca antes tive, e pôs-se a beijar-me. Um beijo com gosto de último.
Da voz da bela índia melodias aos meus ouvidos chegaram. Falava em intervalos, isso quando eu não me inebriava pelo absinto que era sua saliva. Não pude conter a emoção e me declarei apaixonado por ela. Chorei.
Dela recebi outro beijo e a indicação para irmos bosque adentro. Queria acompanhá-la, não importasse onde.
Passamos por uma chusma de árvores e fomos dar numa espécie de cabana. Tive a impressão de no solo brotar fogo-fátuos, a despeito da escuridão da noite. Eu queria perguntar se era aquele o lugar onde vivia, mas voz nenhuma de minha garganta saiu. Deduzi que a paixão me havia travado a língua, permitindo apenas que na dela tocasse, acariciasse.
Entramos na cabana – ela também havia declarado seu amor por mim – e nos deitamos na única cama que tinha. Nada mais havia dentro dela além da cama, exatamente no centro.
Achei que havíamos feito amor, mas a única coisa que lembro, além dos beijos ardentes e apaixonados, foi de ter dormido ou desmaiado. Acordei no alto da madrugada com o guizalhar de um grilo dentro da cabana. Olhei em derredor e percebi em mim ataduras. Principalmente nas mãos, nos pés e tornozelos. Perguntei-me o que me havia ocorrido e me assustei com minha própria voz: alterada, rouquenha, profunda. Cheguei a gritar se minha amada estava ali, mas não a vi. Sua língua não mais senti. O amor e a saliva nunca mais provei. De tristeza. De saudade. Eu chorei.
Pensei. Recordei-me do seriado se sci-fi, do telefonema, do pedido de socorro, da bela índia, da paixão que senti quando a vi e do amor quando me beijou. Achei que se me recordasse daqueles passos poria um sentido naquilo. Daria um porquê às ataduras. O espanto, todavia, não foi ter-me recordado do amor, mas do horror. Preferia não ter atendido aquele telefonema, ter dito um grande dane-se a quem me ligava e continuar com minha paixonite por Rose. Preferia nunca ter sido prestativo, mesmo com estranhos. Preferia ter sido egoísta e continuar com aquela minha vida. Preferia.
Nas lembranças, claro, minha querida índia, mas principalmente da capotagem. A vi, bem no meio da estrada, desviei e capotei. Na sequência ela pegou minhas mãos, em mim se enrolou e me beijou. Bela, eu disse. Mas de sua face purulenta só agora me recordo. Guiou-me ao que parecia, em meu delírio, uma cabana, mas nada mais era do que um mausoléu, e na pedra-túmulo, que com minhas mãos ergui, nos deitamos. Eternos. Amantes.
Por ela me apaixonei. Fico até hoje esperando seu retorno. Traiu-me, mas ainda assim anseio por aquela boca purulenta, por aquela língua bolorenta. Deito agora em meu próprio campo-santo maldito, no leito nupcial que um dia ela também deitará, sossegada, não mais me traindo. Deitará quando parar de atrair outros homens à morte. Como foi meu caso. Não posso e nem vou sair daqui.
Se porventura tu aceitares meu conselho, digo-te pelo amor que sinto no peito por aquela índia, pela ânsia do reencontro: deixe-a para mim.
Não atenda o telefone .
Fim
Com O Pé Direito - Elsen Pontual
A madrugada chorava uma chuva fina e triste enquanto a lua cheia tentava timidamente vencer a barricada de nuvens e lançar um quê de prata sobre as pedras do Marco Zero. O cheiro de maresia enchia o ar e o silêncio invadia cada centímetro das ruas do Recife Antigo. Em uma noite comum, a música iria se misturar à fumaça e aos risos dos boêmios, saudando qualquer um que ousasse desvendar os mistérios da Veneza Brasileira, mas não havia nada de comum naquela noite.
Alheio ao clima e à solidão, Sebá cambaleava tendo apenas uma garrafa de Pitú como companhia. O velho ébrio não sabe como fora parar ali e pouco se importava. Enquanto a aguardente estivesse descendo por sua garganta, tudo estaria bem. Um passo seco ecoa a suas costas e Sebá sente os pelos da nuca se eriçarem em um arrepio frio que desce a coluna.
Um segundo passo traz o medo para mais perto de Sebá que se recusa a olhar para trás. Velhas estórias passeiam por sua memória e o bêbado se apega a uma Ave-Maria balbuciada e tremida. De olhos cerrados, Sebá sua em pingos grossos a cachaça quando um terceiro passo pousa a centímetros de suas canelas. Não há mais opção, ele se vira para finalmente defrontar o dono daqueles sons tão profanos.
Sentindo os ossos doerem e tremendo a cada movimento, Sebá encara o espaço vazio entre ele e os armazéns. Nenhuma aparição o espreita, nenhum demônio o persegue. Então por que o suspiro de alívio não consegue escapar de sua garganta? Por que aquela presença sinistra ainda é sentida como uma faca que se aloja e contorce no estômago? Desviando o olhar para baixo, Sebá encontra sua resposta.
A perna musculosa e coberta de pelos, decepada no final da coxa, o fita remexendo seus dedos nodosos de unhas cumpridas e afiadas. Um negror quase absoluto se apodera de Sebá quando este percebe que parte do osso amarelado e rompido ainda pode ser visto projetado para fora da carne pútrida e fedorenta da criatura. Diante de tamanho horror, a paralisia de Sebá é desfeita e o bêbado dispara em desabalada carreira. Enquanto corre entre prédios e ruelas de outras eras, Sebá consegue ouvir o monstro persegui-lo com saltos e investidas não naturais.
Buscando o ar em longas arfadas, Sebá vê a esperança nascer na forma de um homem que perambula às margens do Capibaribe. Desesperado em conseguir ajuda, Seba grita para alertar o estranho sobre o malassombro que o persegue:
– A perna!- berra quase sem fôlego- A perna cabeluda! Assombração!
– Assombração?- pergunta o homem de pele negra como o azeviche, revelando num sorriso dentes pontiagudos e talhados no mais puro ouro- Mas isso não existe!
Fim
A Bela Da Noite E O Valente Sirlônio - Tânia Souza
Mas eita que tu é por demais de linda, heim princesa, quer sair da vida não? Pra uma gata como tu, eu dava pouso, comida e roupa lavada. Ficar nessa vidinha pra que, princesa?
O que eu sei? Já andei pelo mundo, gata, vi coisa que tu nem sonha. Corpinho como esse, dava era muito material pra malandro e não falo de chamego bom não, tu sabe, as curvas que tem por fora, são boa por demais, mas as de dentro, valem é ouro. A parada acontece de verdade, to te falando.
Foi lá pras bandas de Campo Grande. Conhece? Melhor, chega mais aqui, gatinha, que eu conto. Na época ainda era guri, nem conhecia esse mundão. Lembra a rodoviária velha, né. Praquelas bandas, tu manja os hotéis da área? Então, a maioria tá de porta fechando, o prédio virou um centro de lanches. As lojas do andar de cima? já era. Agora é rodoviária nova, só nos trinques, bonitona e longe pra cacete, ops, foi mal aí gatinha. Mas na época, aquilo era o fervo. Mulherada, cachaça e se o cabra quisesse, dava pra chapar legal. Tio Sirlônio não era santo, pois. Negocio feito, partiu pros furdunço. Saca só o nome da casa onde ele foi parar: Bela da Noite.
Mulher perfumosa, uísque importado e preço dobrado do que cobravam as damas da rua. Mas o tio queria coisa fina. Era como eu, o tio, não dava trela pra qualquer uma não. Mulher tinha quer ser feito tu, gatinha dengosa. Tinha mulher nada, o tio, veio em nome do patrão.
Então, noite ia alta e tava difícil achar uma mulher que enchesse uma cama, como ele queria. Até que ela apareceu. Quando viu a princesa, de cara notou que era biscoito fino, não sabia se teria grana para tanto não. Mas o aroma da moça era bom por demais, e o tio não era de resistir aos tranco de uma morena. Negócio arranjado e ela mesma oferecia o local, não carecia de ser no hotel dele não. Mas que cheiro bom que tu tem, heim gata. Pois, tu sabe né, na noite tem esses riscos sim. Quartinho era limpo e a moça, cheia dos dengos. Eita que tio suspirou largado com a festa que teria. Se teve? Ara, que os homem da minha casa não negam raça não, minha flor, que tu já viu ainda a pouco que a herança corre no sangue. O sacode foi por tudo que parte, incluso na banheira debaixo da agua morninha; serviço foi tão bem feito que a moça nem queria cobrar a noitada, mas tio insistiu, e acabou por pousar no hotel com a princesa. Tio Sirlonio não sacou que o doce, tava era doce demais.
Bebeu das mãos da moça uma tal poção revigorante “pra acordar animado pra ela”, a dondoca soprou. Daí, já viu né, sente só o aroma do embuste. Era arapuca das braba. Quando tio acordou, os músculos ainda reclamando dos exercício noturno, primeiro sorriu de gosto, depois foi sentindo o frio...
Tava na cama com a mocinha não, tava é na banheira encardida, gelo por tudo que lado e dor espalhada na carcaça moída. Bem no azulejo mofado, um bilhete das letras redonda e caprichada, mostrava um numero e dizia: “liga agora, se quer viver. Teu rim vai ganhar outro corpo, Sirlonio, meu bem.”
No hospital, falaram que ele teve sorte. A mocinha devia de te gostado dele, pois lhe levou só um dos rins. Fosse como os outros, tava é morto da silva. Pois, e é por isso que só levo meus chamegos pra casa, nada de hotel, princesa. Aqui tem perigo não, prezo por demais meu rim e aprendi a lição.
O tio? Passou bem com um rim só, e nunca esqueceu da morena. Queria o rim de volta, nada, queria era o cheiro bom da princesa que colou nele e além do rim, levou-lhe foi o juízo.
Sumiu no mundo, o tio.
Agora, chega de conversa, minha linda, que o sono ta brabo. Dorme ai, gata, amanha te dou uma carona. E já sabe, se quiser largar dessa lida, coração aqui é bruto, mas pra ti, entrego sem dó.
...
Madrugada, um carro parou em frente a casa silenciosa, um homem e uma moça abriram o portãozinho sem muito ruído. Ela levava nas mãos uma bolsinha de festa, e ele, uma maleta.
Sirlonio Gaudino e Pietra Galdino encerravam mais uma noitada. A motorista, morena bonita que só, apesar da idade marcando a face, sorriu quando eles entraram no carro. Aquele Sirlonio era cabra persistente mesmo, achou a morena e o negócio da família prosperava.
Pietra suspirou. O coração do moço, entregue de tão boa fé, até que teria boa serventia no mercado. Mas o sangue do pai correndo nas mesmas veias... E fora tão afoito que lhe dera pena servir-se de todos os órgãos.
Bem que lhe daria muito gosto rever o primo. Se ele ligasse a tempo, um rim não faria tanta falta assim...
Fim
Triiim Triiim - Emerson Pimenta
O toque do telefone retumbou por toda a casa mergulhada na escuridão e solidão. De dentro do banheiro Dany revirou os olhos. Típico, o telefone tocar quando se está sozinho em casa e entra no banho. Tocou mais umas três vezes até a jovem perder a paciência e sair sem terminar, embaraçando-se na cortina do Box e deixando suas pegadas molhadas por toda a casa.
— Alô? — mascarou a ira.
Silêncio.
— Alôoooo? — continuou a ouvir o silêncio — Merda! — desligou o telefone e voltou para o banheiro.
Estava prestes a entrar novamente na ducha quando o barulho recomeçou. Dany, que havia levado o aparelho para dentro do banheiro, colocou-o no ouvido.
— Alô — ouviu então uma respiração colada em seu ouvido. Mas não o ouvido em que o telefone estava, o outro.
Fim
Bônus:
Um Certo Papai Noel - Luiz Poleto
O gosto na boca tornou-se amargo quando o cigarro começou a queimar no filtro. Eu mal percebi, pois ainda estava hipnotizado pela parede vermelha à minha frente. Vermelho: a cor que algumas pessoas associam com paixão; não vejo como essa cor pode ser paixão, sinceramente. Vermelho lembra Papai Noel e aquela sua roupa ridícula. Vermelho lembra as bolas da minha velha árvore de natal. O rótulo da coca-cola sobre a mesa. Sangue, vermelho lembra sangue. Muito sangue.
Havia uma lenda na minha cidade natal que dizia que Papai Noel era uma figura inventada para substituir a figura do famoso bicho-papão. Pelo menos na minha cidade, a lenda dizia que o bicho-papão não saia de dentro do armário; ao invés disso, aparecia na noite de natal para levar as crianças em seu imenso saco vermelho. Depois da criação do mito do Papai Noel, a lenda sofreu algumas variações através do tempo, e a mais recente dizia que Papai Noel levava as crianças para servirem de alimento às renas – e era daí que elas tiravam a sua capacidade de voar: alimentando-se das almas puras e inocentes.
Eu nunca acreditei em lendas e fiz questão de que meus dois filhos – Ariel e Samuel – nunca tomassem conhecimento da história, mas era óbvio que eles tomaram conhecimento da lenda, afinal, todos na cidade a conheciam. Quando me perguntavam, eu desconversava. E ponto final. Hoje, entretanto, me pergunto se eu deveria ter dado mais atenção à esta famigerada lenda. Hoje, após todos os acontecimentos que tornaram minha vida insuportável, eu tenho certeza de que deveria ter acreditado em lendas.
Era uma noite de véspera de natal e o calor chegava aos 32 graus. Havíamos feito a ceia e nos divertido um bocado. Depois que minha esposa Anne colocou as crianças para dormir, seguimos a tradição de colocar os presentes ao pé da árvore de natal para que as crianças os encontrassem no dia seguinte. Era o décimo natal de Ariel e o oitavo de Samuel, e todos os natais anteriores seguiram rigorosamente esta tradição. Pudera eu voltar no tempo e fazer diferente daquela vez. Sem presentes, sem árvore, sem Papai Noel.
Anne sempre insistia para que dormíssemos perto das crianças, com medo de que elas levantassem de madrugada e fossem pegas pelo bom velhinho. Eu, é claro, repudiava a ideia e sempre impus a minha vontade de não deixá-la fazer isso. Era por volta de meia noite e trinta quando Ariel se levantou da cama (até hoje não sabemos se para pegar os presentes ou para ir ao banheiro) e passou pela sala; eu e Anne dormíamos um sono pesado e delicioso nesta hora e não ouvimos quando ela se levantou. Não sabemos o que houve. Só me lembro de acordar com o grito desesperado de minha filha e o barulho da porta da rua sendo aberta à força. Acordei assustado e corri para a sala para encontrar a porta da rua destruída e minha filha desaparecida. Não sei se foi raiva ou desespero que tomou conta de mim naquele momento, mas sei que corri mais ou menos doze quilômetros em busca de Ariel. Mesmo a polícia, durante seis meses, não a encontrou. Anne atribuiu seu sumiço ao Papai Noel; eu acredito (acreditava, é melhor frisar isso agora) que ela tenha tido uma crise de sonambulismo e desapareceu noite afora.
Os meses após o sumiço de Ariel foram de tristeza. Mesmo aceitando que ela já estivesse morta, era difícil não ter o seu corpo para enterrar. Ainda assim, tentamos levar a vida da forma que nos era possível. Passamos a dedicar total atenção a Samuel, que foi o único filho que nos restou e tornou-se mais especial e amado do que já era antes. Anne passou por um momento bem difícil e quase precisou ser internada, mas felizmente, superamos tudo juntos (embora discordássemos quanto à razão do sumiço de nossa filha).
Dois anos se passaram até que conseguimos superar de vez o trauma ocorrido, com isso voltamos a comemorar o natal (coisa que não fizemos no ano anterior – a dor era muita naquele momento). Tudo preparado como de costume: ceia, presentes, árvore de natal e até uma foto do Papai Noel ajudou a decorar a sala. Eu e Anne quase chegamos ao divórcio quando eu quis seguir a tradição de deixar os presentes embaixo da árvore de natal para que Samuel os encontrasse no dia seguinte. Após muita discussão, consegui convencê-la a aceitar, propondo que eu dormisse um pouco mais tarde e ficasse atento para o caso de Samuel acordar e ir para a sala.
A vida é cruel algumas vezes, e algumas pessoas parecem escolhidas a dedo por Deus ou quem quer que governe o Universo. Samuel levantou-se no mesmo horário em que Ariel havia levantado dois anos antes, mas desta vez eu estava um pouco mais atento, e ouvi quando ele abriu a porta do quarto e dirigiu-se à sala. Levantei da cama sem acordar Anne, e bem devagar, segui Samuel. Eu estava sonolento, mas creio que as palavras que cuspo agora neste papel estão bem fiéis ao que vi – ou penso ter visto. Ao chegar na sala, Samuel estava mexendo nos presentes. Doce, inocente, ingênuo. Creio que era exatamente o que Papai Noel procura, porque em um piscar de olhos, uma leve fumaça espalhou-se ao redor da árvore de natal e vi – juro que vi – Papai Noel com sua ridícula roupa vermelha e um imenso saco da mesma cor, bastante cheio (de crianças, penso agora). Ele parou na frente de Samuel, que parecia tão incrédulo quanto eu, fez-lhe um carinho nos cabelos e abruptamente agarrou sua cabeça e o sacudiu como se fosse um bicho de pelúcia. Naquele momento eu me desesperei e tentei correr em direção àquela cena grotesca e salvar Samuel, mas minhas pernas pareciam pesar como chumbo.
Apesar do esforço tremendo que eu fazia, elas pareciam coladas ao chão, e tudo o que eu podia fazer era ver a criatura jogando Samuel de um lado para o outro, fazendo o sangue sujar o chão, as paredes, o sofá e até o teto. Eu chorava compulsivamente ao mesmo tempo em que tentava sair do lugar. Quando pensei que a cena de horror tivesse terminado, o dito cujo abriu uma boca que mais parecia um jacaré – mas com dentes de tubarão – e sem remorso, sem piedade, sem qualquer escrúpulo, engoliu a cabeça de Samuel. Engoliu-a inteira, da mesma forma que engolimos uma azeitona ou um ovo de codorna. Nesse momento, eu acho que desmaiei, pois só me recordo de acordar quando o dia amanhecia e Anne gritava desesperada por Samuel. Mais uma vez, um filho nosso era levado pela lenda que teimei em não acreditar a minha vida toda.
Desnecessário dizer que meu casamento com Anne não resistiu à perda de mais um filho. Tentamos terapia, assistência religiosa e qualquer coisa que prometesse ajudar a superar os problemas, mas alguma coisa dentro de nós havia mudado. Eu passei a beber compulsivamente; primeiro, durante as noites, mas quando vi, eu passava o dia inteiro com uma garrafa de pinga barata cambaleando pelos cantos. A cidade, que apesar de acreditar na lenda e passá-la adiante de geração em geração, tentava me culpar pela morte de meus filhos, entretanto, a polícia nunca encontrou provas que pudessem me incriminar. Pensando agora, a cadeira elétrica seria uma ótima opção para dar desfecho a esta vida vazia. Mas isso não vai acontecer.
Não tenho certeza se dez ou vinte anos se passaram desde os ocorridos, a bebida provavelmente me impede de lembrar até o meu próprio nome. Hoje, véspera de natal, voltei à minha velha casa para uma última ceia. Anne não está mais aqui – aliás, ela já não está mais entre nós. Enquanto eu me afundei na bebida, ouvi que Anne pegou uma arma e estourou os miolos no mesmo local em que Samuel fora levado. Eu não tenho uma arma em minhas mãos. Tenho apenas uma garrafa de pinga vagabunda, um galão cheio de gasolina e fósforo, muitos fósforos. Sei que ele só aparece para pegar crianças, mas por algum motivo, a data de hoje me parece especial e tenho a impressão de que ele vai aparecer (esqueci de mencionar apesar de encontrarem uma arma junto ao corpo de Anne, ela nunca foi usada).
Hoje é véspera de natal, e aguardo ansiosamente a chegada do bom velhinho.
Fim
Fonte: A Irmandade.Net
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